Acabando com as mentiras do alcoólatra
- Vitor Marcelo Blazius
- 14 de abr. de 2021
- 10 min de leitura
Atualizado: 9 de mai. de 2021
Um dos vários mitos que existe sobre pessoas dependentes de álcool é que alcoólatras são pessoas mentirosas, com uma falha de caráter.
Isso não é verdade, ou pelo menos não é compatível com pesquisas científicas. Isto é, há tantos mentirosos alcoolistas quanto não alcoolistas.
Então se você quer fazer quem você ama parar de beber e de alguma forma você sofra com as mentiras, esse artigo foi feito para te ajudar a entender melhor o porque isso acontece e como você pode superar isso em direção a uma vida valiosa para você.

Dizem também que os alcoolistas, por conta de particularidades nos eu caráter, seriam pessoas com altos níveis do mecanismo psicológico da negação. Isto é, seriam pessoas que negam ou rejeitam a realidade, não reconhecendo por conta disso, os prejuízos causados pelo álcool. E essa é outra falácia. Mais de 50 anos de pesquisas não comprovaram isso.
(Chess, S. B., Neuringer, C., & Goldstein, G. (1971). Arousal and field dependency in alcoholics. Journal of General Psychology, 85(1), 93–102. https://doi.org/10.1080/00221309.1971.992065 )
Mas com frequência os alcoolista podem mentir sim. E existem várias razões para isso.
Não estou aqui defendendo, dizendo que está tudo bem mentir. Mas acredito que entender as causas, consequências e como mudar isso é muito mais útil e produtivo do que julgar e criticar.
Mas perceba que se quem você ama tem bebido demais, é fácil com que essa pessoa acabe se comportando de maneira de que ela não se orgulha, o que gera um certo estímulo, para esconder tais comportamentos de que não se tem muito orgulho.
Por outro lado, mentiras são ferramentas que quase todos usam em algum momento para tentar reduzir emoções negativas nos outros. É um comportamento tão humano que uma criança, assim que começa a ter condições, começa já a contar pequenas mentirinhas. É até um sinal de saúde da criança. Quando você já sabe que se você contar a verdade, a reação da outra pessoa vai ser muito negativa, pode ser tentador mudar um pouco a história, pra evitar lidar com isso.
É possível que o alcoolista que você ama no fundo se sinta bastante mal em relação a forma com que ele vem bebendo e as coisas que ele tem feito. Talvez essa pessoa esconda isso mas no fundo talvez esteja pelo menos um pouco confuso, assustado ou com raiva. Talvez um pouco de tudo isso. E isso talvez esses sentimentos colaborem para que essa pessoa que você ama, tente esconder parte da realidade de você. Principalmente nos estágios iniciais da mudança (Pré-contemplação e contemplação - estágios em que a pessoa se encontra com pouco ou nenhuma intenção de mudar naquele momento).
O que eu sei que pode ser muito frustrante para você e até difícil de compreender. Quem sabe isso até desperte em você uma sensação de decepção e talvez você possa até entender isso como uma ofensa pessoal. E para te ajudar a não cair nessa armadilha que, acredito que vai te trazer mais sofrimento do que benefício, quero te convidar para fazer um pequeno exercício.
Imagine a seguinte situação. Que alguém que você ama fica muito chateado com algum comportamento seu. Vamos imaginar algo que você não reconheça como um problema necessariamente, como por exemplo: comer chocolates demais. Imagine que você esteja comendo vários chocolates diariamente, o que você não enxerga como problemático. Mas seus amigos e sua família começam a se preocupar e advertir a parar de comer chocolates. E aí, você talvez fique com a sensação é de que todo mundo está de olho, que exista muita pressão. E ao mesmo tempo você não concorde com os argumentos dessas pessoas. Talvez você até no seu íntimo considere que possa ser melhor reduzir os chocolates, mas não tem tanta convicção de que quer mudar esse comportamento pelo menos no momento atual.
Não estou falando aqui de negação do problema, e sim de ambivalência. De por um lado não quer, mas por outro lado querer mudar. Você já reparou como isso acontece? Qualquer pessoa que seja um pouco mais atenta aos próprios comportamentos certamente conseguirá reconhecer esse dilema em si em algum momento da vida. (Um dilema de mudança. Mas isso já é assunto para outro momento).
Ou pior, imagine que você já disse que ia mudar, mas daí acabou recaindo nos velhos hábitos. E as pessoa começam a te cobrar porque você disse que queria mudar, mas no momento não acha que precisa tanto ou talvez não se sinta tão capaz de mudar isso agora.
De qualquer forma se por qualquer razão seus amigos e sua família estiverem colocando muita pressão para você mudar seu comportamento, as chances são de que você ira sentir pelo menos um certo impulso para convencer a todos que não tem porque eles se preocuparem tanto, pra aliviar essa pressão.
Eu não sei se você se identificou com esse exercício. Mas de qualquer maneira, entenda o conceito aqui. Não necessariamente a mentira é um sintoma de falta de amor ou falta de caráter. A reflexão que quero trazer é que por trás de uma mentira, costuma existir uma complexidade, uma profundidade que ao ser compreendida, pode trazer caminhos mais produtivos para você e quem você ama.
Quem sofre de alcoolismo além desses mecanismos relacionados ao dilema da mudança, precisa lidar também com o estigma social. A sociedade de forma geral, apesar de exagerar na importância que dá ao consumo de bebidas alcoólicas, condena e critica muito pessoas que desenvolvem a doença da dependência ao álcool.
O que gera também um componente de vergonha. Ninguém quer se identificar como um “alcoólatra”, até pela reação que isso pode causar nas pessoas. Preconceito mesmo.
E muitas vezes a mentira acaba se afundando num ciclo vicioso. Uma vez que você mentir, a tendência é ter que contar outras mentiras para que ninguém perceba que você mentiu. Pra que você não tenha que lidar com a vergonha por ter mentido.
E o ciclo vai se repetindo.
Então se quem você ama também está envolvido em mentiras, como você deveria falar com ele para que ele fale a verdade para que você seja capaz de ajudar ele? Ou para ajudar ele a querer mudar o próprio comportamento? Como você poderia lidar com uma pessoa que você suspeita que está presa nesse ciclo de mentiras? Como você poderia conversar com alguém quando você não pode confiar no que ele está dizendo?
Primeiro eu vou falar sobre o que não fazer.
Não tente provar que ele está mentindo a todo custo. Tentar desmascará-lo só vai fazer ele sentir mais vergonha e ter a tendência a evitar mais ainda a verdade.
E outro alerta que eu te daria seria para você não enfatizar no quanto parece obrigatório que essa pessoa te diga sempre a verdade em relação ao consumo de álcool dela. Isso mesmo. Por mais contra intuitivo que isso pareça, não focar a atenção da mentira, mas sim na solução do problema, costuma trazer menos mentiras e mais solução.
Então quando você for conversar sobre algum problema cuja mentira está envolvida comece pensando:
Qual é o seu objetivo nessa conversa.
O que você quer tirar dessa conversa?
Você quer que ele simplesmente escute seus pensamentos e preocupações?
Existe algum comportamento específico que você gostaria de ver nele?
O que você espera que ele compartilhe com você e porque?
Como essa informação seria útil para você?
Você tem a intenção de manter uma comunicação mais aberta ao longo do tempo com essa pessoa?
Cada objetivo desses exigirá que você se comunique de forma diferente.
Sabendo onde você quer chegar, é possível se concentrar na forma em que você irá se comunicar independente do que o outro irá dizer.
Por exemplo, se depois de alguns dias você souber que seu esposo passou no bar e tomou algumas cervejas antes de ir para casa e depois chegou dizendo que veio direto do trabalho. É importante aqui você compreender qual é a função desta mentira. Perceba como é fácil você começar a ter diversos pensamento imprecisos ou inúteis. Como "ele não se importa comigo" ou "se ela me amasse mesmo, diria sempre a verdade".
Entenda a mentira como um erro. Sim, é um erro e um sinal de que existe um problema. Mas não é necessariamente pra te machucar que essa pessoa mentiu. Cuidado para não alimentar pensamentos de que o outro é um egoísta, que não está pensando no seu lado da história.
Como eu disse a pouco, pode ser que ele simplesmente esteja ambivalente quanto a parar de beber que queira evitar ter uma briga com você. No momento. Não significa que será sempre assim. E tentar apagar fogo com fogo, não tende a funcionar.
O que você poderia fazer?
Você poderia avisá-lo de que você faria o seu melhor para controlar seus sentimentos para conversar sobre isso calmamente e avisar quais são suas intenções. Por exemplo de que vocês possam se sentir a vontade para falar um com o outro sobre o que quer que aconteça.
E também seria útil você reforçar o comportamento de falar a verdade. Por exemplo: agradecendo por pela honestidade.
Se você quiser simplesmente expressar seus sentimentos, dizer que você tem medo e que você quer ver ele bem e saudável, você pode praticar fazer isso de uma não agressiva, de uma forma assertiva.
Se você quer que ele tenha um comportamento mais específico, tipo chegar em casa direto do trabalho, como deveria ser sua comunicação? E o que ele acha que iria ganhar mudando esse comportamento? Focar nos benefícios geralmente aumenta as chances algo ser feito de boa vontade.
Perceba que focar somente no fato de que houve uma mentira, tende a te afastar dos teus objetivos de trazer mudanças positivas para a vida de vocês. E acima de tudo, para você mesmo.
Então dessa forma além de estar influenciando com a sua forma de se comunicar, você também estará incentivando o comportamento de honestidade, através das suas atitudes, como a de controlar suas emoções e de reconhecer o valor de ele falar a verdade, por exemplo agradecendo.
Agradecer pode parecer inútil, ou pouco. Mas ter esse hábito de reforçar as coisas positivas quando elas acontecem, mesmo quando são pequenas, é um estímulo para que elas crescerem no relacionamento de vocês.
Por conta desse conflito todo do alcoolismo, pode ser que ele fique sempre na defensiva por achar que vai ser sempre criticando e que nada do que ele faz de bom será percebido mesmo. Então ao falar com você, mesmo esses pequenos gestos, vão estimulando ele a se abrir mais e que vocês possam conversar mais sobre as coisas que acontecem e, assim poderem agir de formas colaborativas.
Caso mesmo assim ele não fale a verdade, então já estamos falando sobre limites. Você irá precisar esclarecer para si e para ele quais são os seus limites. O que você irá fazer nos casos em que você souber que ele está mentindo ou que você suspeite que ele está mentindo?
A ideia aqui não é ser punitivo, e sim justo.
E manter na cabeça quais são seus objetivos. Que é manter a honestidade na comunicação de vocês? É se certificar de que essa pessoa se importa com você? É se certificar que essa pessoa está sendo capaz de se cuidar?
Busque entender qual seria a função dessa mentira? Ele está mentindo por qual razão? O que ele perderia falando a verdade? Porque ele acha que não vale a pena falar a verdade?
Será vale a pena, neste momento, você impor de forma tão intensa que ele mude? Será que isso seria produtivo? Lembre que a proposta aqui é fazer um convite para a mudança e não exigi-la.
Se ele fizer algo que ultrapasse os limites do que você considera aceitável para o relacionamento de vocês, isso precisa ser discutido, mas com flexibilidade.
Tenha em mente de que a honestidade depende também de retomar a confiança no relacionamento, e se você ao longo do tempo o criticou de forma agressiva muitas vezes, pode ser que essa confiança precise de um pouco mais de tempo para se desenvolver.
Quero deixar claro aqui que eu não estou dizendo que você é culpado pelas mentiras do alcoolista. Pelo contrário, eu não acredito que procurar culpados vá ajudar qualquer um de vocês. A ideia aqui é te ajudar a refletir sobre como você pode trazer mais luz para sua própria vida. E na medida em que for um desejo seu, fazer quem você ama parar de beber. Isto é, através do desenvolvimento das suas habilidades, usar o seu poder para estimular um ambiente de mudança, de crescimento para você e para quem você ama.
Deixa eu ilustrar isso com uma história de uma aluna minha, talvez você se identifique ou que isso te ajude a entender melhor sobre o que estou explicando. Ela sofria muito e se sentia frustrada porque seu filho costumava mentir para ela. As vezes eram pequenas mentiras sobre onde ele ia, outras ele simplesmente dizia que não havia bebido mesmo quando isso era óbvio para ela. E ao longo do tempo ela sempre repetia o mesmo enredo com ele. Ela o criticando e dizendo o quanto era errado ele mentir e ele se afastando e minimizando o problema. Era quase automático, ela fazia sem pensar. Quando ela suspeitava que ele estava escondendo algo ela já levantava a voz e reclamava exaltada. Conforme ela foi se dando conta de si mesma e das reações que tinha ao comportamento do filho, ela pode começar a fazer pequenos testes na mudança da própria reação. E ela descobriu que um dos fatores que levava o filho a mentir era justamente porque ele não queria ter que lidar com o "esporro" da mãe. Por 2 razões, segundo ele. A primeira era que ele não queria ser incomodado, ele achava que poderia resolver as coisas sozinho ou que não era de fato um problema o que ele vinha fazendo. E a segunda é que ele não queria causar sofrimento para a mãe e na cabeça dele, esconder os problemas era uma forma de proteger a mãe do sofrimento.
Ela me contou que se espantou ao perceber que o filho se sentia assim, porque para ela não fazia sentido. Uma vez que ela enxergava a situação de uma maneira bastante diferente. Para ela, o que aparentemente mais trazia sofrimento era justamente ele mentir. Mas isso deu a ela uma chance de pensar mais profundamente. Ela se deu conta de que ele falar a verdade para ela sempre que bebia não era o que ela realmente precisava. O que ela realmente queria era que ele parasse de beber. E ela achava que o veículo para isso seria ele parar de mentir. Mas não foi. Muito pelo contrário, a pressão e a busca incessante pela "verdade absoluta" só estava fazendo um perder a confiança no outro e o diálogo deles piorar a cada dia. Porque, de fato, a verdade nas relações está mais perto da conexão real e da auto responsabilidade, do que da pressão e do controle. E no caso dela um dos obstáculos era o conflito em excesso, mas isso pode acontecer pelo oposto também, pela ausência de conflito, por sempre ir varrendo tudo pra baixo do tapete.
De qualquer forma, hoje, até a última vez que nos falamos ela não lembrava mais de quando havia sido a última vez que ele tinha mentido ou bebido. E ela finalmente pode sentir que, ela nunca havia sido o problema, mas que ela era e foi (e é) parte da solução.
Se você quiser saber mais sobre como lidar com as mentiras do alcoolista para fazer quem você ama parar de beber, você pode assistir esse vídeo que eu gravei:
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